segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Ainda Torga

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


Impressiona o drama da sua existência – uma existência tão independente, que procura sempre criticar e actuar contra os atropelos à dignidade, à justiça, preservando a liberdade no sentido que julgava mais autêntico, mas que se foi afastando da fé cristã e da Igreja e, de acordo com a verdade que a caracteriza, não encontrou outro que as substituísse
Daí o seu lamento: "Isto de religião está cada vez pior dentro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiados, a coisa foi secando até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano, mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da Igreja com a cara que trazia o meu vizinho" Diário I.
A sua ligação à terra, à montanha, à planície e o relato que faz das mesmas e da lusa gente traça-nos um retrato ainda hoje tão actual do Portugal que somos. Aquele que lê o DIÁRIO, como escreve Sofia de Melo Breyner, "percorre Portugal de lés a lés, o seu espaço telúrico, humano, e o espaço histórico e cultural" (Miguel Torga, Poeta Ibérico).
“Na sua escrita forte como um grito, um apelo da terra que o viu nascer, na sua exemplar dignidade cívica, na inteireza do seu carácter, reencontramo-nos com Portugal”, lê-se na mensagem de Cavaco Silva divulgada pela Presidência da República.
Daí que se perceba tão mal a falta de um membro do governo na comemoração do seu centenário ontem, em Coimbra.
Afinal, sinal dos tempos, este gesto mediocrizante dos responsáveis políticos da nação não é inédito. Mostra bem como encarreiraram por uma compreensão estéril da condição humana, que se resolve bem com planos tecnológicos subservientes da eficiência e da eficácia, mas que ignoram a profundidade da alma humana. Quem se distraiu com as ligeirezas de currículos da disciplina de português do básico e secundário, com os critérios desculpabilizantes dos exames nacionais, com a exoneração da directora do Museu Nacional de Arte Antiga, que julga que os problemas da educação em Portugal se ultrapassam com a facilitação do acesso a computadores portáteis, à introdução de quadros digitais nas salas de aula…, não pode agora espantar-se boquiaberto perante o Marão da indiferença da intelligentzia liderante de Portugal face à efeméride. O pragmatismo reinante é secante, uma vez que diz do caminho a percorrer que ele se faz de eficácia e eficiência que levam ao “sucesso”. Estimular o contacto com os que antes de nós tiveram de lidar, bem ou mal, com o cabo das tormentas com que tantas vezes a existência nos brinda, não é caminho para considerar em tempo de luta contra o deficit ou de recuperação do atraso económico face ao resto da Europa comunitária. Esta percepção das coisas castra a vida que habita o homem, reduzindo-o apenas a peça de uma mera engrenagem. É outra a voz agora escutada. A. Huxley e o seu Admirável Mundo Novo estão decerto bem mais próximo das cogitações dos senhores do momento. Pior para todos.

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