sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Recado

"A tentação dos prudentes é a aceitação da falsa prudência, o consentimento secreto concedido ao pior, o medo que se chama amor da paz."

Jean Guitton

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A história absolver-me-á

Fidel de Castro. Estudante nos bons colégios da oligarquia de Havana. Formado em direito, advogado determinado dos opositores ao regime do corrupto Fulgêncio Baptista, rapidamente tornado o porta-bandeira da pretendida revolução, fica senhor de Cuba em 1959.

Era um chefe. Quase 5 décadas completas de império, na ilha, dispensam qualquer necessidade de argumentar em favor da sua autoridade.
Desafiou, humilhou, resistiu, aos EUA. Mérito seu, certo. Mas, sandice também do país que se lhe opunha, sempre mais hábil nas coisas da tecnologia e logística do que nas subtilezas do jogo diplomático, na inteligência das relações e na criação de cenários favoráveis ás suas pretensões.
Recebeu incondicional apoio da URSS. Pudera! Ter um aliado ás portas da Florida não era coisa de somenos.

Mas Fidel foi grande sobretudo, na afirmação de uma nova mitologia. Todas as palavras sagradas da revolução (a começar por esta mesma) tinham um valor absoluto, quando propagandeadas nos paises dos outros: progresso, cultura, saúde, e principalmente liberdade...
Pai da revolução adoptou o feroz Che como filho da mesma. Quando as relações azedaram exportou-o. E todo o franchising fotográfico e ornamental anexo.

Mas é sobretudo na literatura, na literatura de suporte, que está o coração do milagre. Gerações de cubanos perseguidos por delitos de opinião. Prisões sumárias, condenações à morte, proibição de liberdade de religiosa, obstinação na ideologia deixando o seu povo à fome, traficando dólares, nesta fase final do regime, no turismo de prostituição. E tolerância máxima para Fidel na comunicação social.

Sim: A comunicação social é o segredo. Obstinada, corajosa, criativa, solidária, quando se trata de travar e expulsar um qualquer general que veio da direita. Compreensiva, boemiamente celebrativa, radicalmente anti-americana, passiva quando chega a hora de enfrentar Fidel.

Daí não podermos deixar de dizer ‘o rei vai nu’. Estranho que ainda ninguém se tenha lembrado de acenar para o que parece ser óbvio: Fidel já morreu. E para fazer a transição sem sobressaltos internacionais a coisa foi escondida. A prova do argumento? Não tardará 3 meses até assistirmos ao seu enterro de estado.
‘A história absolver-me-á’ escreveu um dia Fidel.
Duvido.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Alexandre Sokurov

Primeiro conheci-o através de Pai e Filho, um filme cuja rodagem passou por Lisboa. Mais recentemente, vi também Mãe e Filho, outro filme dedicado por Sokurov ao mesmo ciclo das relações essenciais. Porque é isso que ele tenta e alcança na sua obra. Com particular intensidade e génio, capta em imagens de imensa atenção e beleza o mistério e dignidade das pessoas. Sem a linearidade de personagens, sem a demagogia do sensual, sem a redução do humano ao psicológico, eis que nos é feita a dádiva de um cinema intensamente humano, porque intensamente dramático e invocativo. Da palavra e presença de um Outro.
Finalmente, a razão de ser deste post: um pequeno texto que me chegou ás mãos com as suas opiniões sobre esta pátria. Luminosas.

"É um país espantoso, talvez o mais misterioso da Europa. Em Portugal há uma qualidade que me impressiona muito, a tristeza. Muitos portugueses foram pessoas geniais. Portugal será dos países onde há mais génios que não são conhecidos. São pessoas tristes que vivem para si, uma qualidade de experiência pessoal que os diferencia dos demais. E um carácter nacional inacreditável. Digo isto por intuição e não porque me baseie em algum conhecimento particular. Vocês têm uma grande quantidade de energia escondida. (...) É muito fácil encontrar portugueses numa multidão de europeus, do mesmo modo que numa multidão de asiáticos é muito fácil descobrir onde estão os japoneses. (...) Quanto mais Portugal se juntar ao espaço europeu maior será a tragédia da cultura portuguesa, ela estará cada vez mais próxima de um estado de choque, porque precisa de dar azo aos seus sentimentos para se desenvolver. É muito complexo. As misturas são muito complexas. (...) As formas artísticas populares são muito complexas. Mas elas existem, estão lá. Por exemplo, se os espanhóis (falo de espanhóis porque estão aqui perto) vos impusessem a sua forma de vida, as suas imagens, a sua cultura, seria um caos. Em termos fincanceiros e económicos, a união europeia terá muitas vantagens, mas em termos culturais a ideia inspira-me muita desconfiança e alarme, acho que é uma tragédia".

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O Douro e os outros dias

Caramba!!! Hoje o dia está tão bonito!
O ar, os cheiros, as cores, uma certa temperatura com que o sol nos acaricia!
Estes dias fazem-nos lembrar outros tantos, igualmente venturosos, em que semelhantes (ou díspares – que importa!), raios, cheiros, ares e cores nos entram pela alma adentro, como amigos que nos visitam…

… Quando os rapazes hoje transportavam às costas os cestos de roupa, no seu trajecto vindimeiro de a irem buscar ladeira acima, veio-me à memória, como tantas vezes vem, uns certos dias do Julho anterior em que nos foi dado o Douro pelas mãos de Deus, do seu servo e amigo Padre Pedro, e de um outro servo que não sabia bem que o era – Miguel Torga:

“Covas do Doiro, 11 de Setembro de 1981 – Diferentes em tudo, até no ofício, um ao serviço de Deus e o outro ao serviço dos homens [não sabias tu que não se pode servir Um sem servir os outros, nem verdadeiramente servir os outros, sem que se sirva o Um!], nunca o julguei capaz de semelhante comunhão. Vinha a seu lado num deslumbramento mudo, docemente embalado no carro, que parecia um pião tonto a rodopiar pelas encostas enjeiradas reflectidas no espelho sinuoso do rio. Mas às tantas não resisti. Num ímpeto de confissão, murmurei:
– Só tenho pena de morrer por causa desta paisagem…
E ele, como num eco:
– Também eu…”


Miguel Torga,
in Diário – XIII volume, Gráfica de Coimbra, 1983.


Muito grata, Pe Pedro, por nos ter dado o Douro como o sente!
E por este sulco de saudade que nos ficou no coração!

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O 7º Dia

O teu corpo é o teu corpo e a tua alma é a tua alma e foste parte desta espécie que é o homem. Tiveste um nome que te deram e a junção de todos os teus actos foram recolhidos na bolsa de onde vieram. Agora não tens tempo, nem hoje, nem depois. Não tens parcelas, nem vasos foscos onde dorme o esquecimento. Vives na eternidade. Que é sempre o agora, antes e depois, no ponto onde tudo se junta dentro e fora do tempo. O que és e o que foste são os teus actos e nós somos a memória incompleta desses actos, o que resta de ti quando já não és. Somos a tua sobra, o teu testemunho, o dia que serás. Tu foste. Depois da morte vem a eternidade. Continuas a ser, mas já não és, agora és tudo, desde o teu pai e de tua mãe, desde o acto da Criação, desde o acto da Criação até ao fim dos fins, és o tudo que cabe no acto que é sempre o agora. Tudo está em ti, todos os teus actos dispersos e caóticos, perdidos e fortuitos, sáo um só. Juntos, uma gota de tudo o que és dentro da eternidade. Tu és o tudo de todas as coisas que se juntam. A memória é o pó, a saliva, a terra lambida. É o gesto da dor e do sofrimento de quem ainda não sabe. Resta-me a cinza: sentada no banco verde, ao fim da tarde, quando o tempo ainda era tempo e havia lágrimas, ouvi-te chorar e dizer-te a cor e o derrame. Rezo-te, Cândida, porque te desejo a eternidade.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Espanha

A afirmação da Conferência Episcopal Espanhola ainda não foi suficientemente aplaudida. É um gesto enorme, de coragem e fé. Num tempo onde tudo é igual, provisório e se cultiva a indiferença são precisos gestos deste tipo. De aprofundamento, de distinguir a essência. Entre o não e o sim há uma diferença: de qualidade, de visão, de afirmação. O que disse a Conferência Episcopal é muito simples: não se pode votar PSOE porque a nossa estrada é outra. Não afirmou pressupostos de carácter geral. Foi à base, á altura das coisas. Disse não. O que fez o PSOE não é nosso. E disse-o, como se dizem as outras coisas. É aqui que se ganham as batalhas, que se faz a separação. Existe, hoje, um conjunto de valores que derivam de interesses e não de necessidades reais ( veja-se, por exemplo, os números do aborto e de como as previsões estavam erradas). É que este tipo de cultura é quase imbatível: afirma a rotura, a separação, a suposta causa individual em detrimento da afirmação de necessidades públicas ( afirmar uma política pública de saúde não é uma exigência mais concreta que a suposta ligação legal entre pessoas do mesmo sexo?). Hà um mundo cultural fortíssimo que afirma isto: jornais, televisão, Hollywood (...todos apoiam Obama...), todos aceitam isto quase com deferência. É pena que pouca gente se indigne. Que pouca gente enalteça o gesto da Conferência Episcopal, que pouca gente questione a cultura que hoje é feita, que pouca gente afirme claramente um outro sim.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Tributo

Completam-se hoje quinze anos sobe a morte do meu pai. Deixou saudade e obra também. Luiz de Lancastre e Távora (1937 – 1993) dedicou-se largos anos à investigação histórica, com especial incidência nos campos da Genealogia, Heráldica e Sigilografia. Possuindo um elevado número de trabalhos publicados, duas das suas obras mereceram ser galardoadas, uma delas com um prémio internacional. Fez parte do corpo docente encarregado de ministrar os cursos de Iniciação à Genealogia e Heráldica iniciativa levada a cabo pelo I.P.P.C. através do Instituto Português de Heráldica e com o patrocínio das Universidades Clássica e Nova de Lisboa. Funcionário da Biblioteca da Assembleia da Republica, foi destacado para a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, onde, a par de outras funções, dirigiu as actividades do Projecto Arquivos de Família. Sócio efectivo do Instituto Português de Heráldica, da Associação Portuguesa de Genealogia, da Sociedade de Geografia de Lisboa, e da Associação dos Arqueólogos Portugueses. Galardoado com os prémios General França Borges (A.A.P.) e Salazar y Castro (Academia Internacional de Genealogia e Heráldica, com sede em Madrid).

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Uma cruz antiga

Houve um tempo em que velavas descalça, e os pés bonitos, (era preciso vê-los), sobressaíam no desconjunto da figura, e desse tempo, mais a voz rouca que bradava, ficou o teu retrato de mulher maltratada.
Houve um tempo em que amaste, e choraste, e voltaste a amar, da única maneira possível… ah, pois, os vícios, de mal a pior, não falemos nisso agora.
Houve um tempo em que foste menina e moça, como cantava Bernardim! Pouco sei da tua infância, mas se nunca me falaste nela, é porque não interessava. Ainda assim, deixa-me imaginar os olhos escuros rasgados e os sonhos claros alados de uma rapariga do norte!
Houve um tempo em que te conheci por dever de circunstância, tempo de lamber feridas, tempo de esperança, que foi crescendo até à insuportável ilusão de uma vida renovada!
Nesse tempo, candidamente, ofereceste-me um azulejo com o emblema que me agrada, uma cruz encarnada que pintaste sobre o azul do céu!
Depois, houve um tempo para tudo, para saíres e voltares, e partir outra vez, quase definitivamente, enquanto a tua cruz esmaecia, e é hoje um traço apenas de uma cruz antiga.

(memórias da Cândida)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O Kosovo e o Escudo anti-mísseis americano

1º A Grande Sérvia conheceu o seu apogeu nos sécs XIII-XIV. Foi a época das famosas igrejas de cinco cúpulas, das gravuras sobre ouro, dos mosaicos, dos ícones e dos frescos. É também dessa época o ciclo das grandes epopeias nacionais servias do Kosovo, então parte integrante da Grande Sérvia. Porém, em 1389, nesse mesmo Kosovo, a nobreza sérvia soçobra face aos Turcos numa trágica batalha . Seguem-se séculos de dominação muçulmana. Os albaneses cedem: 70% da população abraça o Corão (note-se que os 30% restantes ainda foram a tempo de dar ao mundo, no séc XX, a Madre Teresa…). Idem com as gentes do Kosovo. Com outra tenacidade os sérvios resistem. Sobretudo em torno do Patriarcado Sérvio-Ortodoxo. Até que no início do séc (1815-17) retoma a sua independência, mas já então ‘dependente’ da protecção russa.

2º O Kosovo ‘independente’ será o primeiro país de maioria muçulmana na Europa (88% da população). Diz-se que outras 200 regiões por esse mundo fora aspiram a igual secessão. Passando por Taiwan. E também pelo País Basco e a Catalunha. Aliás, na própria Europa, para além de Portugal, raros são os países sem fracturas nacionalistas. Mesmo até na insonsa Escandinávia, como é o caso da Finlândia ou da Dinamarca.

3º Descobre-se aqui também uma total desconsideração da Europa como mapa cultural e religioso. Sobreleva-se a disponibilidade para pagar a factura de apoio a Israel e a tentativa de não excitar a vingança muçulmana. A Europa liberal (leia-se pós -e o mais das vezes anti- cristã) atropela as árduas costuras da sua própria história. Convidam-se os Turcos, Kosovares e amanhã os milhões de muçulmanos que por aqui já campeiam para nos ensinar a ser europeus. Como se houvesse alguma hipótese de perenidade fora da excelência que fomos buscar não à técnica, ao dinheiro ou aos militares (já frutos da civilização europeia e não causa da mesma…) mas a uma ideia de homem como pessoa, com dignidade e responsabilidades face à existência, inextrincáveis do apelo e do dom cristão.

4º Corriam os primeiros tempos da primeira presidência Bush. Ufano da excelência militar da sua pátria, e para a defender de ataques exteriores, o Presidente prometeu o escudo protector anti-mísseis: perfeito, inexpugnável, inultrapassável. Até que caíram as Torres gémeas. Atingidas por aviões que tinham levantado voo dentro do solo americano. Ou seja, dentro do tal escudo anti-mísseis!

5º Quem brinca nos Balcãs costuma aleijar-se. Muito! Lideres agarotados (vide o tosco Bush, ou os que se perfilam para o substituir, mas também o nosso standardizado Sócrates ou esse Zapatero desengraxado mental …) julgam que basta estender um pouco de arame farpado entre fronteiras e acenar com o abono da entrada na UE para aclamar os ânimos dessa gente. Não será assim. As vicissitudes são inúmeras nesses Balcãs de intensíssima história: tensão e violência, coragem, liberdade, desfaçatez, composição e recomposição.
Creio que o que hoje protege a América, e a nós também, é pouco mais do que muita burrice farpada.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

História de algibeira (26)

Debaixo de grande polémica, Carolina Beatriz Ângelo, médica, viúva e "chefe de família", ousou votar nas primeiras eleições republicanas a 28 de Maio de 1912 aproveitando as indefinições existentes no enunciado da Lei.
Na sequência da controvérsia, é aprovada pelo senado em 1913 a Lei Eleitoral da República (nº 3 de 3 de Julho) onde pela primeira vez num texto legislativo se determina expressamente o sexo dos cidadãos eleitores: “são eleitores dos cargos políticos e administrativos todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos, ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português e residam no território da República Portuguesa".
O direito de voto às mulheres foi concedido (precariamente) pela primeira vez em Portugal, em 1931 sob o patrocínio legislativo do Estado Novo (lei nº 19:694 de 5 de Maio), restringido àquelas com o curso dos Liceus. Em 1934 nas eleições legislativas foram eleitas pela primeira vez mulheres para a assembleia nacional: Domitília Hormizinda Miranda de Carvalho, Maria dos Santos Guardiola e Maria Cândida Pereira.

Fonte: “A Concessão do Voto às Portuguesas” por Maria Reynolds de Souza, 2006 - Colecção Fio de Ariana editada pela Comissão Para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O ano de 2008

2008 é agora. Três grandes eleições vão definir o pensamento político dos próximos anos: Espanha, Itália, EUA, por ordem cronológica.Três testes decisivos que vâo marcar o decénio do século. Em Espanha, vai começar a campanha eleitoral. Rajoy não começou bem. Está a ir atrás de Zapatero. Este colocou a questão no aspecto económico e Rajoy foi a reboque. Ficar dependente de Zapatero é um erro profundo. Rajoy, um político que é uma incógnita, tem de determinar o debate e colocá-lo no plano que lhe interessa: a questão das autonomias das regiões, da abertura do diálogo com a ETA, e da moral pública. A este nível verdadeiramente espantosa a atitude da Conferência Episcopal Espanhola a sugerir que os católicos não deveriam votar neste governo, assunto que falarei no próximo artigo. Em Itália, Berlusconi vai ganhar. Berlusconi pode não ser um grande político mas tem três qualidades fundamentais: é vaidoso, muito vaidoso, e para um italiano esta é uma das mais nobres qualidades; sabe fundir a sua história pessoal com a história pública - na semana passada a mãe morreu, ontem, em Milão, na apresentação da coligação "Casa della libertá" exclamou:"A minha mãe agora no Céu deve estar feliz por ter um filho que ama e luta por Itália"; tem um sentido de "italianidade" que mais ninguém tem: o seu partido chama-se "Forza Itàlia", as cores são azuis, fala da ponte que ligará o continente à Sicília da mesma maneira que aos empresários das pequenas e médias empresas, ainda a coroa da Itália rica e industrial. Outro aspecto decisivo: é presidente do Milan, o grande clube das conquistas internacionais, o Benfica da Itália profunda, dos migrantes que sonham o poder da Lombardia. Nos EUA a vitória republicana de McCain será muito difícil. Tem 71 anos e é herdeiro de Bush. Mas o grande equívoco é Obama. É impressionante como a "inteligência de esquerda" americana e europeia está rendida à sua figura. É afro e isso basta. A sua campanha até agora não disse nada. O slogan" Change we can belive in..." não é nada. "We can", o quê? Ninguém sabe.

Aborto, um ano depois...

Os Santos Inocentes

Tenho sete razões – diz Deus - para amar os inocentes assassinados por Herodes.

A primeira é que os amo. E isto basta.
Tal é a hierarquia da minha graça.

A segunda é que gosto deles. E isto basta.
Tal é a hierarquia da minha graça.

A terceira é que me agrada. E isto basta.
Tal é a hierarquia, a ordem e a regra da minha graça.

E agora vou dizer a quarta razão:
É porque as crianças não têm na comissura dos lábios
essa contracção de ingratidão e amargura, essa ferida de envelhecimento,
essa contracção de recordações que vemos em todos os demais lábios.

A quinta é por uma espécie de equivalência.
Porque, por uma espécie de contrapeso, estes inocentes pagaram pelo meu Filho:
Enquanto jaziam sobre o solo dos caminhos, das cidades, das aldeias,
menos tidos em conta que os cordeiros, os cabritos, e os leitões,
o meu filho fugia para o Egipto.
De modo que se deu uma espécie de quid pro quo,
uma espécie de mal entendido,
porque esses inocentes foram confundidos com o meu Filho,
e assassinados por Ele, em vez dele,
não só por causa dele, mas por Ele, crendo que era Ele.

A sexta razão é que eram contemporâneos do meu Filho,
da mesma idade, nascidos ao mesmo tempo,
e todos fazemos o que podemos pelos nossos colegas de curso,
e eles foram do curso, eram da turma de Jesus.

A sétima razão –e porque ei-de calá-la?-
é que também eram parecidos com o meu Filho.
O meu Filho era alguém terno e novo como eles,
E desconhecido como eles.
Não tinha na comissura dos lábios essa dobra de amargura e ingratidão,
nem essa outra dobra de rugas nos sobrolhos,
a dobra das lágrimas e de ter visto muito,
nem tinha nas comissuras da memória a dobra de não poder esquecer.
Ignorava ainda as vicissitudes que o esperavam,
tudo aquilo que mais tarde deixaria um eterno rasto:
a coroa de espinhos e o ceptro de cana
e a terrível agonia do calvário,
e a ainda mais terrível agonia na véspera no Jardim das Oliveiras.

Estas são a sexta e a sétima razão que tenho para amar os inocentes:
que me recordam o meu Filho como era
se não tivesse mudado logo,
recordam-mo quando era belo,
quando nada dessa terrível aventura ainda não tinha acontecido.

Eis aqui porque amo as crianças inocentes:
porque entre todos são elas as melhores testemunhas do meu Filho,
os Meninos-Jesus que não foram grandes nunca.

Charles Péguy

domingo, 10 de fevereiro de 2008

O caminho…

“Bestiais como sempre, carnais, egoístas como sempre,
interessados e obtusos como sempre o tinham sido antes,
e no entanto,
sempre em luta, reafirmando sempre,
retomando sempre o seu caminho na estrada iluminada pela luz;
muitas vezes parando, perdendo tempo, desviando-se, atrasando-se, voltando,
mas nunca seguindo um outro caminho”.

T.S.Eliot, “Coros de «A Rocha»”

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Uma "Grande" Carta

Recebi esta carta ontem via e-mail. É muito "grande", em todos os sentidos.

"Queridos todos

A nossa adorada Marta fez análises na segunda-feira dia 4 e confirmou-se que os valores estão a subir: hemoglobina a 10.8 (fazem transfusão abaixo de 7), 240.000 plaquetas (transfunde-se abaixo de 20.000), 800 neutrófilos... Esta aplasia (período em que os valores batem no fundo do poço) foi passada em casa! Agora, se não houver outro tipo de complicações, a Marta vai para o IPO na segunda dia 11, faz análises para confirmar que está tudo bem e começa a sua quarta quimioterapia.

Estes dias que a Marta passou em casa proporcionaram-me umas abertas a mim, Mãe da Marta - como somos tratadas no IPO. Nessas rápidas saídas, tenho encontrado pessoas que, muito atenciosas e preocupadas, me perguntam como é que eu estou. Eu respondo "Estou óptima!" Olham para mim perplexas, sem saber bem se estou a ser irónica, se estou a leste ou se simplesmente já 'me passei'! Mas a verdade é mesmo esta: estou óptima!

Estou também completamente ciente da gravidade do cancro da Marta. Sei que as leucémias mieloblásticas têm uma percentagem de cura que ronda os 30 por cento, que o facto do cancro se ter desenvolvido antes da Marta ter um ano, agrava a coisa, que os cancros têm a característica de serem imprevisíveis: agora está-se a reagir bem e daqui a meia hora está-se em perigo iminente de vida... Tendo já quatro meses de IPO, com vários internamentos e isolamentos, posso dizer que já vi muito. Já vi crianças moribundas que no dia seguinte entraram na salinha dos brinquedos pelo seu pé e já vi crianças que se diria tinham finalmente 'dado a volta' e que no dia seguinte tinham morrido. E já vi aquelas cujo estado geral se deteriora de tal maneira que vão ficando cada vez mais no seu quarto, cada vez mais ausentes até entrarem em coma cada vez mais profundo e morrerem.

Dou-me conta que mais ainda que o desenrolar do próprio cancro, há um sem fim de complicações que aparecem para alterar os prognósticos e os subsequentes tratamentos. Sei também que o processo está longe de estar concluído: quando acabar esta fase vem um ano da chamada 'manutenção' e depois vem a vigilância constante e regular: não se sabendo o que provoca este cancro não se têm pistas para antecipar uma possível recaída. E se houver recaída, tudo fica bem mais difícil e as hipóteses de cura bem mais remotas. Prognósticos aqui, só mesmo no fim do jogo!

E depois, há os tratamentos que são brutais. E brutais as consequências e os efeitos secundários dos tratamentos. E brutais todas aquelas coisas que se espera não aconteçam mas que já aconteceram noutros casos... E há as biópsias sob anestesia e ficar meio dia sem poder comer nem beber, e há as punções lombares feitas sem anestesia... E é a perspectiva de mais internamentos e de mais isolamentos e da vida posta de lado durante anos... E é o dó daqueles que sofrem sem se queixar, e daqueles que não aguentam mais, e dos pais que não são capazes de lidar com a doença, e das crianças que choram, choram... E é o ambiente que pode ser tão pesado que os próprios médicos dizem: 'há dias que nenhuma palavra é capaz de descrever o que aqui se passa'...

Para não falar no famoso transplante que a ouvir as pessoas é tão simples como tomar uma aspirina. Simples é, na medida em que o transplantado recebe a medula a transplantar através do caterer: parece uma transfusão. Mas aqui acabam as parecenças. Para preparar o doente para o transplante é preciso 'eliminar' por completo a medula do próprio, o que é feito com doses ainda mais 'letais' de quimioterapia e outros processos. E depois é preciso que o transplante agarre, que não seja rejeitado, que não rejeite o seu novo hospedeiro, que o que resta do sistema imunológico do doente não se ponha a combater desenfreadamente este invasor... E os vómitos, e os enjoos, e as feridas no sistema digestivo, e os problemas na pele, e as complicações... são proporcionais. E este isolamento sim é rigorosíssimo e não costuma durar menos de dois a três meses.

No meio disto tudo, a Marta tem tido um percurso surpreendentemente bom.

Porque a quimio tem resultado (há crianças cujos cancros não cedem nem um milímetro a doses sucessivas de quimioterapia), porque de todas as infecções que podia já ter feito - fez poucas, porque de todas as complicações - só fez a dos fungos... Porque odiava 'fazer o penso do cateter' que tem que ser mudado todas as semanas, chorava, gritava, debatia-se e ficava roxa que nem uma beringela (descolam-se os adesivos que agarram à pele e isolam de infecções primárias, limpa-se, desinfecta-se com alcóol e colocam-se novos adesivos) mas já fez dois pensos sem chorar! No hospital de dia toda a gente sabe que de todas as crianças e adolescentes que por lá passaram só havia uma menina que não chorava quando fazia o penso. Agora se calhar vai passar a haver uma segunda.

E esse famoso cateter que tem funcionado sem problemas! Há crianças que com o mesmo tempo de cancro que a Marta já mudaram 4 vezes de cateter, outras que não podem pôr cateter.... E é vê-los serem picados para tirar sangue, para fazer tratamentos. E já nem tem a ver com a perícia das enfermeiras que é muita, tem a ver com a saturação e a dificuldade em gerir esta 'doença prolongada'.

A Marta é um deslumbramento e vive este desafio com uma maturidade e um sentido de humor que fazem pasmar todos: ao pé dela, a gente sente-se bem! Como não tem irmãos compatíveis e tem respondido bem aos tratamentos, os médicos decidiram não agendar para já o transplante na esperança de que a Marta seja dos raríssimos casos de mieloblásticas que se curam sem transplante. Eu acho isto uma benção do céu, não acham?

Perante tanto milagre, tanto mimo de Deus, como não viver em acção de graças?
Como não receber com toda a gratidão os paliativos que Deus nos manda, à Marta e a nós?
Como não louvar a Deus por esta avalanche de orações que amigos e desconhecidos têm feito descer sobre nós?
Nunca achámos que a vida fosse feita sobretudo ou só de coisas boas. Se agradecemos essas, como não agradecer as outras?
Se pedimos a Deus para acabar a vida nos Seus braços divinos, como achar que o nosso caminhar se pode fazer à margem daquilo que é intrinsecamente humano e que inclui dor e sofrimento?
Se sabemos que Deus gosta da Marta e de cada um de nós com um amor indizível e irrepetível, que para ela e cada um tem um projecto de amor perfeito, como não confiar, sem réstia de medo?
Se sabemos que nos entregámos à Providência misericordiosa de Deus, como não viver em absoluta paz?
E se sabemos que a fé é um dom gratuito, como não o receber com toda a humildade?
A felicidade não é a ausência de dor. A morte é a passagem para a verdadeira vida.
Deus criou-nos para sermos felizes: em que é que andamos a perder tempo?
De facto, a única coisa que devemos temer é o mau uso da nossa liberdade porque isso sim afasta-nos da felicidade.
Tudo o mais é a certeza absoluta do carinho e da ternura avassaladora de Deus por cada um de nós. Ser feliz é ter a certeza do amor de Deus por mim. É cantar, como Nossa Senhora, o meu 'Magnificat'.

Como é que eu estou? Estou óptima!"

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

O Imperador

Homenagem ao Pe António Vieira
nos 400 anos do seu nascimento

A fachada erguia-se ancestral e rude.
Sibilavam ventos e sons guturais, lançados das portas.
Escárnios e cantigas negras abafavam a harmonia.
Convidados a entrar, os gonzos pesados gemiam ainda agonias.

Outro espectáculo nos era dado considerar
para lá daquele primeiro abalroamento de ruídos:
salas renascentistas homenageavam os grandes da família.
Aprumados e apurados viam-se os ancestrais maiores,
épicos e líricos desse reino.
E era voz de Príncipe a que elevava sublime o canto da nossa gesta.

Depois, porém, fomos ensurdecidos com a fantasia.
Sucediam-se salas de oiro e de brilhos barrocos,
salões sumptuosos,
e bailes apaixonados de palavras.

Mordomos vários indicavam ao séquito estar, todavia, já próxima a sala do trono.
O rigor arquitectónico era agora limpidíssimo. Preciso.
Notavam-se subtis escadarias em espirais.
Pelas janelas inacianas entrava uma luz suavíssima.
E os ares eram rarefeitos.
Havia fragrâncias que sugeriam raridades exóticas.
Tingidas de sangue as tapeçarias expunham tons vários
denunciando crimes, combates e enredos mil
que o palácio escondia.

Mas chegados, então, junto da majestade
eis que nos abriu os braços em gesto largo de nobreza atlântica
o velho sábio de mãos de filigrana e nervo:
santo incontestável da liberdade da terra e da língua,
prega-dor da doçura de floreados levíssimos,
o nosso mui pobre senhor, António Vieira
búzio do mistério da pátria,
sacerdote do destino católico de nós todos,
destemido navegador da língua,
mártir da paixão por um Portugal de honra e beleza.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Outros Carnavais

Nunca aderi espontaneamente à festa do Carnaval. A chegada das serpentinas, máscaras e bombinhas às montras das tabacarias despertava-me algum interesse, mas esse não superava de imediato um leve sentimento de melancolia provocado pelas recém-finalizadas festas natalícias e pelo reinício da implacável disciplina escolar.
As minhas mais remotas recordações do Carnaval referem-se à casa da Avenida, onde a minha bisavó Valentina imprimia ao evento uma marca particular, fruto da sua passagem pelo Brasil. Por exemplo, lembro-me de um grande boneco que nos aguardava, medonho, à entrada da casa de jantar. Era feito de roupas e enchimento em cima de um cabide de fato e usava o chapéu do meu avô João. Os croquetes feitos com algodão e outras partidas célebres desses Carnavais da Avenida não alcança a minha memória.
O que me desagradava profundamente era que me mascarassem. Mesmo de Cowboy, figura heróica de todo o ano. Detestava que me pintassem com bigodes e patilhas de cortiça chamuscada, ou me espetassem com um chapéu de plástico que me caía continuamente da cabeça a baixo. Além disso ficava com uma intimidante “noção de mim”, era o fim da espontaneidade. O que eu gostava mesmo era dos lustrosos revólveres prateados e umas cargas de fulminantes para correr aos tiros atrás dos meus primos. No recreio da escola, a figura de Cowboy ainda valia o esforço de pôr a bata xadrez entalada para dentro das calças de ganga. Era o que bastava para me sentir um autêntico Cartwright. Mas isto nada tem que ver com o tema desta crónica. Carnaval para mim eram as semanas precedentes ao feriado, em que eu e os meus colegas da escola experimentávamos as mais endiabradas aventuras com bisnagas, bombas e “estalinhos”. Com cinco tostões comprávamos cinco estalinhos ou… uma bomba. Com cinco escudos possuíamos um verdadeiro arsenal. À saída da escola, munidos de uma carteira de fósforos, corríamos o bairro, de caminho para casa a rebentar bombas nos sítios mais insólitos. Nada como uma boa explosão dentro de uma funda sarjeta, ou na escadaria de pedra de um prédio. Até os vidros tremiam, enquanto já a milhas corríamos em fuga. Ainda pelas ruas de Campo d’ Ourique armados com coloridas pistolas espaciais, corríamos endiabrados à volta dos carros estacionados disparando potentes esguichos de água uns aos outros. Até esbarrarmos com uns quaisquer gandulos do Casal Ventoso que, violentos, com uns gritos e uns socos se apoderavam das nossas preciosas armas. Era a lei da rua, a lei do mais forte.
No Carnaval era a festa de anos do meu primo Manuel. Festas inesquecíveis, com muita criançada, em que acabávamos a tarde exaustos, enrolados em quilómetros de serpentinas, às escuras, a ver projectados desenhos animados Silly Symphonies de Walt Disney ou umas curtas-metragens do Charlot em Super 8.
Na entrada da adolescência, no Liceu Pedro Nunes, por altura do PREC, quando qualquer divergência se resolvia democraticamente à pedrada, as partidas carnavalescas atingiam requintes de malvadez. Por pudor escuso-me a relatar algumas arbitrariedades por mim testemunhadas. Mas era comum detonar uma dessas poderosas bombas no “Metromijas”, o WC dos rapazes, umas instalações subterrâneas situadas no meio do pátio. Depois era esperar, após a estrondosa explosão, que as vítimas assomassem ao cimo das escadas, esquálidas e despenteadas…
Chegados ao Entrudo, os excessos e a brincadeira estavam feitos e gastos. Então, sempre me pareceram patéticas as figuras daqueles miúdos mascarados em passeio com os seus babosos pais, com quem me cruzava a andar de bicicleta no Jardim da Estrela. Que tristonhas “espanholas” e “noivas do Minho”, que infelizes aqueles repetidos “Zorros” e “campinos”, de bochechas pintadas e olhos tristes. Com uma matinée no cinema Europa, umas voltas de bicicleta e muita televisão passava-se o meu Carnaval. Mas afinal que bom que eram para mim aqueles cinco dias sem ir à escola!

Fotos: Daqui

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Cem anos de decadência

Faz hoje cem anos que matámos o rei, o dia amanheceu solene e triste, as primeiras notícias confirmam o que esperávamos, o bastonário da ordem dos advogados cumpre os serviços mínimos para que foi eleito – interferir e descredibilizar ainda mais o processo da Casa Pia.
Há cem anos, o processo do Regicídio também se perdeu nos gabinetes da primeira república, a verdade nunca se apurou, e a impunidade venceu.
Faz hoje cem anos que perdemos o fio à meada, não admira portanto que tenhamos perdido o sentido comunitário da honra, da liberdade e da independência.
Acreditamos hoje que o crime do Terreiro do Paço, e as sucessivas (e inevitáveis) revoluções republicanas que lhe seguiram, serão as grandes responsáveis pelo atraso a que estamos votados.
Sabemos hoje, apesar da censura, da propaganda, das várias cumplicidades, que o rei foi um extraordinário estadista, que visava longe, desde logo a reforma do estado, o reforço da centralidade atlântica, a investigação e valorização dos nossos recursos marinhos, que tão bem conhecia, mas sobretudo, a defesa e o desenvolvimento dos territórios africanos que estavam à nossa guarda. Nesse sentido, o Príncipe Luís Filipe, herdeiro do trono, viajou até Àfrica naquela que foi a primeira deslocação de um membro da família real às colónias portuguesas.
Mas também sabemos que o espírito reformador do rei colidia com os interesses instalados, e na política externa, com os interesses das grandes potências, que cobiçavam as nossas colónias. Tudo isso, tudo junto, compôs o cenário do crime. Tudo isso, tudo junto, foi ganho pelo atentado.
Cem anos depois, a reforma do estado continua por fazer, o rotativismo que vivemos é o mesmo, ou pior, a justiça não funciona, e trocámos a centralidade atlântica, base secular da nossa independência, pela periferia de uma união europeia que pode falir a qualquer momento.
Com tudo isto, e tudo junto, cem anos depois, passámos de média nação europeia... para a cauda da Europa!
Por tudo isto, faz todo o sentido, que todos juntos, evoquemos os cem anos da morte do Rei Dom Carlos.
Que esta homenagem seja o primeiro passo para a reconciliação de Portugal com a sua história.