segunda-feira, 31 de março de 2008

Trieste

Trieste é o fim, o último lugar. Trieste é a fronteira, o limite, depois de Veneza e do verde da planície, é o fim. Aqui é o fim, mas tudo pode começar de novo. Em Trieste é sempre o fim, não se sabe quando. Depois da montanha chega a Eslovénia, a Croácia e o resto. As montanhas escondem segredos. Nunca se sabe o que está do outro lado. Trieste espera como sempre esperou. No século dezanove, antes de Viena, era Trieste. Antes de Viena, o mar era a chegada. O porto, o grande porto, as grandes ideias, a Mittleuropa, a grande ideia do Império, Itálo Svevo, antes da primeira guerra. Trieste era o grande porto de entrada no Império, quase morreu, e, depois, do outro lado da montanha chegou Tito, outra guerra, refugiados italianos expulsos do ventre das serras e do mar. Agora, depois da missa no cemitério de Santa Ana, à mesa, diante do mar, a velha senhora de olhos claros disse o que todos sabem aqui. A guerra vai começar, não se sabe quando, mas vai começar. Eles, os da Sévia, nunca se rendem. Na noite cerrada, em pleno porto, diante da Igreja de Santo António, o mar ruge no abismo de cada destino. Trieste é o fim. A fronteira. Mas a fronteira nunca acaba. A fronteira é o cansaço e o eterno recomeço. No abismo desta cidade, em crise, sempre em ruptura, a sua identidade é sempre uma pergunta, um caminho, um colapso. A grande espera é a sua essência: onde é Trieste?

sábado, 29 de março de 2008

“O Acordo Ortográfico”

“ Não conheço ainda, em pormenor, as regras do novo acordo ortográfico.
Como o Governo Português pediu uma moratória de 6 anos, tenho tempo para o estudar. Contudo, por muito que, eventualmente, venha a concordar com as normas concretas, há dois aspectos de princípio (por isso anteriores às normas) com que não posso concordar.

O primeiro é que, sendo nós os autores da língua, não temos nada que a acertar com outros povos a quem ensinámos primeiro e depois a adoptaram como sua. Têm eles todo o direito de a adaptarem às suas necessidades, usos e costumes e, de acordo com isso, a fazerem evoluir como evoluem todas as línguas vivas. Mas sem pretenderem que nós falemos o português como eles falam. E sem pretendermos nós que eles o falem como o português europeu.
A preocupação de afinarmos todos pelo mesmo diapasão parece-me uma atitude de subserviência perante o número de falantes e um complexo de culpa do antigo colonizador. Hoje somos todos independentes. Eles de nós e nós deles.
Não consigo imaginar a Espanha a fazer um acordo ortográfico com Cuba, a Guatemala, o Chile, o Equador ou qualquer das suas antigas colónias. Nem a pretender que lá se fale ou escreva como em Castela.
E muito menos imagino o Reino Unido a fazer acordos desse género com os Estados Unidos. Nem sequer com a Austrália ou o Canadá que ainda fazem parte da Coroa Britânica.
Porque são grandes e fortes, a Espanha, a França e a Inglaterra tratam de igual para igual, e não de cócoras, os povos a quem transmitiram a sua língua.

O segundo é que se trata do problema específico da ortografia.
O argumento mil vezes repetido de que a língua é uma realidade viva e dinâmica porque são os falantes que fazem a língua, é o protótipo do argumento pseudo-culto e, por isso, pretensioso. Porque, sendo verdadeiro, nada tem a ver com o caso vertente.
É certo que são os falantes que fazem a língua: da maneira como a falam e não como a escrevem.
Essa realidade dinâmica e viva (que não nego, antes afirmo) tem a ver com a fonética e com a sintaxe. Nunca com a ortografia.
A única maneira de respeitar a liberdade cultural com vários povos lusófonos é deixá-los falar e deixá-los escrever cada um à sua maneira: europeia, africana ou brasileira. O que, de resto, só enriquece a língua lusíada.
Por isso os acordos, além de complexados, são castradores.”

Lido no jornal católico “A Ordem”, de 27 de Março de 2008, e da autoria de M. Moura-Pacheco.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Uma raça perigosa

Eu ainda disse para fecharem as universidades, era uma maneira de estancar a degeneração, mas ninguém me ouviu, houve até quem insinuasse que se tratava de uma manobra para acabar com a raça dos doutores, espécie protegida como se sabe.
Sugeri então que se encerrasse a escola pública mais o seu monstruoso ministério! Que não, que não podia ser, onde é que se encaixava aquela mole imensa, era o desemprego, a miséria, o país não resistia! E o que é que se fazia a tanto professor?! Admiti o excesso e recuei, mas não deixei de resmungar: - para ‘ensinarem’ que o Dom João VI tinha ‘fugido’ para o Brasil, não eram precisos tantos! Bastava um casal para perpetuar a raça! Eu bem sei que muitos estão inocentes porque os conteúdos fazem parte da propaganda do ministério… e do regime! Bem, mas não podendo ser pelas razões caritativas expostas, há que encontrar uma solução rápidamente. Eu tenho uma ideia, aliás, duas ideias, a saber: partindo das actuais características da raça, resultado de um inesperado cruzamento de um dogue com um bovino, sabendo que atacam quando estão telemóveis por perto, e preferem o piercing ao açaime, eu tentava adaptar a prevista legislação sobre raças perigosas às escolas. E quanto ao piercing, em lugar de proibir tornava obrigatório o seu uso na orelha, mas com chip.
Se esta ideia não resultasse, avançaríamos para a outra, menos rápida mas mais radical: estou a pensar numa sábia combinação entre o aborto, a eutanásia e uns incentivos para casamentos homossexuais. E acabava-se de vez com esta raça perigosa.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Semana Santa

Em direcção ao escritório, no meio do transito implacável, oiço as notícias do mundo em ebulição. A chuva bate forte sob as nuvens pesadas e tristes. A guerra, a governança, a bola, a economia, reverberam nos altifalantes do rádio enquanto o país que se prepara para alvorar pró Algarve, pró Brasil ou simplesmente prá “terra” nestas mini-férias de Páscoa. A minha terra é Lisboa e eu ficarei por cá.
Então vem-me à memória um tempo em que, na família e no bairro, vivia-se uma Páscoa cristã. Pondo-me a pensar melhor, se calhar isso era apenas uma ilusão minha, provocada pelo o ambiente familiar que reflectia uma certa sobriedade própria da Semana Santa. Em minha casa ou nos meus avós, os rituais preparatórios da grande celebração cristã marcavam aqueles dias, e o melhor que podia acontecer naquele tristonho início de férias, era uma futebolada com os colegas da catequese no adro da igreja, entre uma manhã de Retiro espiritual e a Celebração Penitencial. A televisão e a rádio também espelhavam aquele tempo de recolhimento, com muita música clássica, longas metragens bíblicas ou alguma série histórica. À Sexta-feira nem publicidade passava.
Com isto não quero dizer que nutra particular saudade por essa época, ou que tais modos políticos fossem especialmente virtuosos, antes pelo contrário. Reconheçamos que também não serviu para nada o facto de então todo o país ver teatro à segunda, cinema à quarta ou Nemésio ao Domingo. A incivilidade e o atraso cultural permanece aquilo que todos sabemos.
O que é facto é que hoje sinto falta de parar um pouco, de um pouco de silêncio... Que parasse por uns dias toda esta atordoante alienação sonora e visual em que sobrevivemos. Parece-me que há barulho a mais, propaganda a mais, correria a mais, um ambiente que condena os mais incautos à mais básica exterioridade. Nada predispõe ninguém a uma pacifica oração, meditação ou escuta interior. E é pelo coração que ouvimos, entendemos ou descobrimos o que demais importante a vida tem para nos revelar.
Para os cristãos é então tempo de parar, pois é para o coração que Jesus nos fala e assim nos redime. É pela nossa felicidade que um silêncio interior se torna urgente.

quarta-feira, 19 de março de 2008

o menino

De dentro do caixão a mãe quase o erguia:"meu filho, meu filho". Tinha os cabelos desalinhados, perdidos, a mão estendida num gesto inócuo. A camâra mortuária era um silêncio, um véu de fogo. As crianças da turma juntavam-se a um canto, o silêncio era uma ferida, um golpe na alma de cada um. Ninguém dizia nada só o choro estendia o que sobra da linguagem. Quando os professores chegaram, a mãe correu para o presidente da escola. Ficaram assim abraçados, um tempo infinito, o que resta de cada um. Mais tarde, não sei quantos minutos, chegaram os escuteiros, a catequista e os companheiros da catequese. O Prior pediu para rezarem. Houve um escuteiro que pegou na guitarra e cantou o Pai-Nosso e os outros a chorar. A oração penetrou a sala, cobriu as paredes e o que está dentro. Era como se a oração envolvesse o nó do mistério, o nó da morte. A mãe olhava de frente, um olhar denso, e rezava com a voz clara. Sem medo era o jugo da esperança, do que está depois e antes. O rosto da mãe era um traço, uma comunhão. Do seu filho que morreu na aula de ginástica aos treze anos. Voltou novamente ao caixão e deu-lhe um beijo na face. Olhava o filho com paixão e amor e rezava a Avé-Maria com a voz limpída, o lastro da fé.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Catequese em forma de ícone

O ícone da Nossa Senhora da Paixão, ou do Perpétuo Socorro, é uma catequese magnífica sobre o Amor. Este ícone conta-nos uma história: Jesus menino acaba de ver a cruz e, assustado, corre para os braços de sua Mãe. Tão grande foi o seu sobressalto, que perde uma sandália. E pergunta a sua Mãe:

- Mãe, isto é para mim?
Maria não O engana. Responde-Lhe com verdade: “Sim, Jesus, isto é para Ti”.
- Mas eu não quero! - responde Jesus.
Maria, então, pergunta-lhe - Jesus, quem traz a cruz e a lança?
- Uns anjos - responde Jesus.
- E quem é que enviou os anjos?
- O meu Pai.
- E o Teu Pai pode enviar-Te alguma coisa má?
- Não.
- Então, Jesus, aprenderás a amar, ainda que uma coroa de espinhos Te cinja a cabeça e não compreendas o mal que te causa; ainda que uma lança atravesse o Teu coração e entregues tudo o que há nele; ainda que cravos Te atem as mãos e já não possas fazer mais nada senão amar. Porque quando ames com todo o Teu coração, com Toda a tua mente e com todas as Tuas forças, então viverás para sempre.
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Adaptado de uma mensagem de correio electrónico

quinta-feira, 13 de março de 2008

Do preconceito ao pecado

Ao contrário do que consta por aí não foi decretada pelo Vaticano uma "nova lista" de pecados mortais. O equívoco baseia-se numa entrevista do Bispo D. Gianfranco Girotti ao jornal do Vaticano L’Osservatore Romano, na qual o prelado, pertinentemente, aborda as novas formas do “pecado social”. Que eu saiba, os dez mandamentos ensinados pelo catecismo da igreja são suficientemente abrangentes para as mais imaginativas formas de corrupção humana.
Não sei em quantas casas portuguesas ainda se fala do pecado, um conceito que o contemporâneo caldinho de cultura e as mais diversas formas de relativismo puseram fora de moda. Na minha, onde se promove a vivência do modelo de Cristo, o assunto “pecado” não é tabu, porque achamos que para enfrentarmos os “bois” temos que chamá-los pelo seu nome.
Estranho bastante a cultura vigente, rápida na denúncia da violência abstractamente considerada, uma cultura que sofre com as estatísticas, por exemplo, da violência doméstica, mas que parece menosprezar o facto de esses números, que são agressões, terem origem em actos concretos, da responsabilidade de pessoas concretas e que vitimam seres de carne e osso, como nós. É normal e legítimo reclamar contra a corrupção, desonestidade e falta de princípios das pessoas. É vulgar e legitimo a denúncia dos problemas pessoais e sociais causados pelo consumo de drogas ou álcool. É de bom tom protestar contra a guerra ou contra a xenofobia, e indignarmo-nos com a simples existência de mães adolescentes ou mulheres que abortam.
A questão, é que por detrás de cada drama como os que referi, está um comportamento, um acto mal medido, mesmo que explicável pelas circunstâncias. Que não deixou de ser um equívoco, uma “falta”, um desvio à individual vocação de cada um para a íntima bondade e público bom senso. Equívocos, faltas e desvios, apesar de tudo, voluntários e, nessa medida, merecedores de uma censura que mais não é do que o reconhecimento de que outro comportamento deveria ter sido adoptado por aquela pessoa concreta. Com a sua história, com a sua estrutura e com o seu contexto. Isto, na minha linguagem, chama-se “pecado”. Resta salientar o mais importante, que a verdade do pecado, para o cristão deverá ser tão relevante quanto o perdão. Uma graça decisiva para o processo individual de crescimento, para quem tem fé, um árduo e exigente caminho para a redenção que alcançamos pelo amor do nosso Deus. E isto é uma coisa boa.

Ao Nuno Pombo um grato abraço.
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Publicado também no Corta-fitas

Reflexões sobre o tempo que passa…

Não foi apenas um debate, foram os trabalhos preparatórios de um futuro acordo, trabalhos que se iniciaram seguindo o antigo ritual de um medir de forças em que os adversários, agora proponentes, simulam alguma animosidade, esgrimem argumentos, mas sem estocadas perigosas ou fatais. Para isso e por isso lá estavam os melhores floretes da república, e não foi por acaso que do lado monárquico surgiu uma nova face, menos crispada e mais cordata, que não extravasasse a emoção de um aguardado ajuste de contas.
Pois bem, o debate decorreu neste clima e neste clima é mais fácil perceber que a velha república afrancesada, aquela que ainda recita Rousseau e gosta de entoar a marselhesa, essa república está esgotada. Em três horas de debate, durante noventa e oito anos, foi incapaz de explicar, e explicar-se, porque é que nunca se sujeitou a ser sufragada, ela que resiste no último argumento de que tudo o que mexe deve ser sufragado!
Do lado monárquico, também não valia a pena terem invocado os índices de desenvolvimento ou quaisquer rankings europeus ou mundiais que asseguram a superioridade das monarquias sobre as repúblicas, porque o Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano ali presente, sabe melhor que ninguém sobre o declínio da França, que se mede facilmente pelo declínio da língua francesa, como sabe também que o nosso declínio tem a mesma matriz, com uma pequena diferença: a França é mais rica e sempre vai organizando umas ‘uniões europeias’ à sua volta, que a vão sustentando! A nós também nos sustentam... só não sabemos até quando!
E foi por isso que o sempre atento Medeiros Ferreira percebeu que estavam a ‘tocar algumas campainhas’, não apenas no arraial monárquico mas noutro, ou noutros, mais submersos e perigosos, e sendo assim, à cautela, sempre é melhor dialogar com os monárquicos do que com os outros! E escrevo isto sem crítica, valorizando dentro do mesmo clima, e dentro do possível, as preocupações patrióticas sobre o futuro de Portugal.
Não importa quem as exprime.

sábado, 8 de março de 2008

Dia de Festa


Hoje é dia de S. João de Deus. E hoje celebramos 14 anos de Vale de Acór.

Como é grande a gratidão pelo Bem que esta Casa faz, e nos faz. Um Bem indiscutivelmente abençoado pelo “olhar” deste Santo de Montemor, que lhe abriu os caminhos!

E como forma de expressar esta mesma gratidão, que é realidade concreta na minha vida, aqui deixo um breve testemunho que escrevi recentemente sobre esta experiência de "ser" do Vale de Acór:

Em 14 anos de trabalho no Vale de Acór é para mim clara a confirmação permanente de que vale a pena acreditar na recuperação dos toxicodependentes. Retomar uma vida sem drogas, mesmo para aqueles casos que aparecem como desesperados, é sempre possível.

Sair da droga não é nada fácil. Assim é a nossa experiência aqui no Vale de Acór: dificuldades imensas, desilusões constantes, recaídas e desistências que surgem quando tudo parece ir bem, momentos difíceis sempre presentes.

Mas com tudo isto, também todos os dias há sinais concretos de uma outra realidade.

Porque não há destinos traçados e porque pode haver sempre uma outra escolha; porque o conhecimento sério de si mesmo e a confiança no outro transformam uma vida egoísta, fechada, destrutiva numa vida com verdade e com sentido; porque a experiência de uma relação autêntica com o outro, que nos olha nos olhos, abre caminho de mudança.

É esta mudança que por aqui vivemos.

E por isso continuamos a acreditar e a trabalhar, com seriedade e profissionalismo, mas também com a alegria, o empenho e a esperança que esta Missão nos exige.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Romper com as referências:

“Quando não há testemunhos exteriores que possamos tomar como ponto de referência, até os contornos da nossa própria vida perdem nitidez.”

A citação foi retirada do livro de George Orwell, “1984”. Não deixa de me causar uma certa impressão, que se trate, segundo o próprio autor, de uma advertência contra as sociedades totalitárias!

segunda-feira, 3 de março de 2008

Porque é que a Páscoa é tão cedo?

A Páscoa é sempre o primeiro Domingo depois da primeira lua cheia depois do equinócio de Primavera (20 de Março). Esta datação da Páscoa baseia-se no calendário lunar que o povo hebreu usava para identificar a Páscoa judaica, razão pela qual a Páscoa é uma festa móvel no calendário romano.
Este ano a Páscoa acontece mais cedo do que qualquer um de nós irá ver alguma vez na sua vida! E só os mais velhos da nossa população viram alguma vez uma Páscoa tão temporã (mais velhos do que 95 anos!).
1) A próxima vez que a Páscoa vai ser tão cedo como este ano (23 de Março) será no ano 2228 (daqui a 220 anos). A última vez que a Páscoa foi assim cedo foi em 1913.
2) Na próxima vez que a Páscoa for um dia mais cedo, 22 de Março, será no ano 2285 (daqui a 277 anos). A última vez que foi em 22 de Março foi em 1818. Por isso, ninguém que esteja vivo hoje, viu ou irá ver uma Páscoa mais cedo do que a deste ano.

sábado, 1 de março de 2008

"A Verdade torna-nos bons"

Os recentes comentários feitos neste blogue a propósito da edição do post do Pe Pedro sobre o entendimento de Alexandre Sokurovc acerca de Portugal e outros comentários que vão surgindo noutros postes, vêm pôr a nu um traço contemporâneo do modo de ser e de estar da personalidade de certas pessoas que, em geral, sabendo pouco substituem a sua ignoratio elenchi (ignorância do assunto) pelo império do argumentário ad hominem (argumento contra o homem).
A este respeito convém dizer o seguinte, que é óbvio, claro e distinto e que se refere ao conteúdo da tolerância e do tolerável:
Há uma extraordinária ausência de clareza quanto ao que se constitui como conteúdo ou matéria de tolerância. A tolerância é devida à pessoa, não, em caso algum, às ideias. Há uma tolerância humana que é imperativa, fundamentada na dignidade humana, mas não há lugar para a tolerância cognitiva. O erro conceptual ou eidético, quando ocorre, não é tolerável. É pura e simplesmente refutável. É imediatamente negado.
Consequentemente, os comentários infelizes, mal educados e absolutamente reprováveis publicados por anónimos exprimem, em primeiro lugar, uma indisfarçável anorexia intelectual que, seguida de orgulho incomensurável, desemboca no insulto fácil, máscara de fraqueza, que se poderá tornar patológica.
Há solução, contudo, para o problema. Passa por um processo de disciplina, melhor, por autodisciplina férrea na gestão do tempo em ordem à edificação do carácter forjado na dinâmica da leitura e da reflexão que lhe está associada.
Quem cultiva o saber frequentemente se depara com as alturas inultrapassáveis das suas limitações. Essa experiência não é desconstrutiva do carácter, mas edificante da personalidade, se entendida como desafio. Mas, por outro lado, vai emergindo em processo, um respeito profundo pela verdade e, consequentemente, pela responsabilidade que conduz à liberdade.
Sendo assim construído o carácter neste espaço titânico para escapar à ignorância, a prudência vai tomando lugar progressível, aí, onde outrora campeava a arrogância e a vaidade.
Cultivar-se também é aprender a amar. Quem se recusa a mergulhar no mar em tormenta do conhecimento, por desamor, aos outros não trará nunca a bonança. Daí a agilidade em que se expande a barbárie.
É que, como diz Bento XVI no texto que devia ter lido durante a visita à Universidade de Roma “La sapienza”, a propósito do sentido do questionar socrático, “… a verdade torna-nos bons e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade…”.
A Verdade torna-nos bons e a falta dela pessoas tristes.
E terminando por onde comecei: os comentários anónimos, infelizes e mal educados deixam-me triste… porque revelam tristeza.

“Com uma certa razão…”

Vasco Pulido Valente tem vindo a refinar com o tempo, o que significa que os momentos lúcidos são cada vez mais frequentes! Sobre o ‘mal-estar difuso’, que também glosei, escreve ele no jornal ‘Público’:

“ (…) Desde o princípio do século XVIII que Portugal quis ser ‘como a Europa’ e até hoje infelizmente não conseguiu. A cada revolução, a cada guerra civil, a cada regime, o indígena prestável, alfabeto, e ‘modernizante’ supunha que chegara ‘o dia’. E ‘o dia’ invariavelmente não chegava. (…) O português copiava com devoção o que via ‘lá fora’. Mas não saía da sua inferioridade e do seu atraso. No meio desta persistente desgraça, Portugal julgou três vezes que se aproximava da Europa: durante os primeiros tempos da ‘Regeneração’, durante o ‘fontismo’ e durante o ’cavaquismo’. Ao todo, trinta e tal anos de uma ordem política ‘civilizada’ e de um crescimento razoável. Mesmo assim, os fundamentos destes raríssimos milagres não eram sólidos. Nos três casos (embora com um ligeiro atraso), uma crise financeira pôs fim à festa e voltou a velha angústia nacional, a que por aí se convencionou chamar ‘mal-estar difuso’. O ‘mal-estar difuso’ é simplesmente o regresso à realidade. Portugal não tem meios para o Estado-providência e a espécie de vida que os portugueses reclamam. E como não tem, toda a gente se agita e ninguém faz nada com sentido. Esta fase também é conhecida.”

Este é um tema inesgotável mas por mais voltas que a gente dê… desagua sempre no Atlântico, e eu acrescentaria, na Lusitana Antiga Liberdade, única fórmula a meu ver viável (e foi) de garantirmos a existência ou sobrevivência de um país, à partida inviável.

Fonte: Jornal ‘Público’ de 29/02/2008.