sábado, 9 de fevereiro de 2008

Uma "Grande" Carta

Recebi esta carta ontem via e-mail. É muito "grande", em todos os sentidos.

"Queridos todos

A nossa adorada Marta fez análises na segunda-feira dia 4 e confirmou-se que os valores estão a subir: hemoglobina a 10.8 (fazem transfusão abaixo de 7), 240.000 plaquetas (transfunde-se abaixo de 20.000), 800 neutrófilos... Esta aplasia (período em que os valores batem no fundo do poço) foi passada em casa! Agora, se não houver outro tipo de complicações, a Marta vai para o IPO na segunda dia 11, faz análises para confirmar que está tudo bem e começa a sua quarta quimioterapia.

Estes dias que a Marta passou em casa proporcionaram-me umas abertas a mim, Mãe da Marta - como somos tratadas no IPO. Nessas rápidas saídas, tenho encontrado pessoas que, muito atenciosas e preocupadas, me perguntam como é que eu estou. Eu respondo "Estou óptima!" Olham para mim perplexas, sem saber bem se estou a ser irónica, se estou a leste ou se simplesmente já 'me passei'! Mas a verdade é mesmo esta: estou óptima!

Estou também completamente ciente da gravidade do cancro da Marta. Sei que as leucémias mieloblásticas têm uma percentagem de cura que ronda os 30 por cento, que o facto do cancro se ter desenvolvido antes da Marta ter um ano, agrava a coisa, que os cancros têm a característica de serem imprevisíveis: agora está-se a reagir bem e daqui a meia hora está-se em perigo iminente de vida... Tendo já quatro meses de IPO, com vários internamentos e isolamentos, posso dizer que já vi muito. Já vi crianças moribundas que no dia seguinte entraram na salinha dos brinquedos pelo seu pé e já vi crianças que se diria tinham finalmente 'dado a volta' e que no dia seguinte tinham morrido. E já vi aquelas cujo estado geral se deteriora de tal maneira que vão ficando cada vez mais no seu quarto, cada vez mais ausentes até entrarem em coma cada vez mais profundo e morrerem.

Dou-me conta que mais ainda que o desenrolar do próprio cancro, há um sem fim de complicações que aparecem para alterar os prognósticos e os subsequentes tratamentos. Sei também que o processo está longe de estar concluído: quando acabar esta fase vem um ano da chamada 'manutenção' e depois vem a vigilância constante e regular: não se sabendo o que provoca este cancro não se têm pistas para antecipar uma possível recaída. E se houver recaída, tudo fica bem mais difícil e as hipóteses de cura bem mais remotas. Prognósticos aqui, só mesmo no fim do jogo!

E depois, há os tratamentos que são brutais. E brutais as consequências e os efeitos secundários dos tratamentos. E brutais todas aquelas coisas que se espera não aconteçam mas que já aconteceram noutros casos... E há as biópsias sob anestesia e ficar meio dia sem poder comer nem beber, e há as punções lombares feitas sem anestesia... E é a perspectiva de mais internamentos e de mais isolamentos e da vida posta de lado durante anos... E é o dó daqueles que sofrem sem se queixar, e daqueles que não aguentam mais, e dos pais que não são capazes de lidar com a doença, e das crianças que choram, choram... E é o ambiente que pode ser tão pesado que os próprios médicos dizem: 'há dias que nenhuma palavra é capaz de descrever o que aqui se passa'...

Para não falar no famoso transplante que a ouvir as pessoas é tão simples como tomar uma aspirina. Simples é, na medida em que o transplantado recebe a medula a transplantar através do caterer: parece uma transfusão. Mas aqui acabam as parecenças. Para preparar o doente para o transplante é preciso 'eliminar' por completo a medula do próprio, o que é feito com doses ainda mais 'letais' de quimioterapia e outros processos. E depois é preciso que o transplante agarre, que não seja rejeitado, que não rejeite o seu novo hospedeiro, que o que resta do sistema imunológico do doente não se ponha a combater desenfreadamente este invasor... E os vómitos, e os enjoos, e as feridas no sistema digestivo, e os problemas na pele, e as complicações... são proporcionais. E este isolamento sim é rigorosíssimo e não costuma durar menos de dois a três meses.

No meio disto tudo, a Marta tem tido um percurso surpreendentemente bom.

Porque a quimio tem resultado (há crianças cujos cancros não cedem nem um milímetro a doses sucessivas de quimioterapia), porque de todas as infecções que podia já ter feito - fez poucas, porque de todas as complicações - só fez a dos fungos... Porque odiava 'fazer o penso do cateter' que tem que ser mudado todas as semanas, chorava, gritava, debatia-se e ficava roxa que nem uma beringela (descolam-se os adesivos que agarram à pele e isolam de infecções primárias, limpa-se, desinfecta-se com alcóol e colocam-se novos adesivos) mas já fez dois pensos sem chorar! No hospital de dia toda a gente sabe que de todas as crianças e adolescentes que por lá passaram só havia uma menina que não chorava quando fazia o penso. Agora se calhar vai passar a haver uma segunda.

E esse famoso cateter que tem funcionado sem problemas! Há crianças que com o mesmo tempo de cancro que a Marta já mudaram 4 vezes de cateter, outras que não podem pôr cateter.... E é vê-los serem picados para tirar sangue, para fazer tratamentos. E já nem tem a ver com a perícia das enfermeiras que é muita, tem a ver com a saturação e a dificuldade em gerir esta 'doença prolongada'.

A Marta é um deslumbramento e vive este desafio com uma maturidade e um sentido de humor que fazem pasmar todos: ao pé dela, a gente sente-se bem! Como não tem irmãos compatíveis e tem respondido bem aos tratamentos, os médicos decidiram não agendar para já o transplante na esperança de que a Marta seja dos raríssimos casos de mieloblásticas que se curam sem transplante. Eu acho isto uma benção do céu, não acham?

Perante tanto milagre, tanto mimo de Deus, como não viver em acção de graças?
Como não receber com toda a gratidão os paliativos que Deus nos manda, à Marta e a nós?
Como não louvar a Deus por esta avalanche de orações que amigos e desconhecidos têm feito descer sobre nós?
Nunca achámos que a vida fosse feita sobretudo ou só de coisas boas. Se agradecemos essas, como não agradecer as outras?
Se pedimos a Deus para acabar a vida nos Seus braços divinos, como achar que o nosso caminhar se pode fazer à margem daquilo que é intrinsecamente humano e que inclui dor e sofrimento?
Se sabemos que Deus gosta da Marta e de cada um de nós com um amor indizível e irrepetível, que para ela e cada um tem um projecto de amor perfeito, como não confiar, sem réstia de medo?
Se sabemos que nos entregámos à Providência misericordiosa de Deus, como não viver em absoluta paz?
E se sabemos que a fé é um dom gratuito, como não o receber com toda a humildade?
A felicidade não é a ausência de dor. A morte é a passagem para a verdadeira vida.
Deus criou-nos para sermos felizes: em que é que andamos a perder tempo?
De facto, a única coisa que devemos temer é o mau uso da nossa liberdade porque isso sim afasta-nos da felicidade.
Tudo o mais é a certeza absoluta do carinho e da ternura avassaladora de Deus por cada um de nós. Ser feliz é ter a certeza do amor de Deus por mim. É cantar, como Nossa Senhora, o meu 'Magnificat'.

Como é que eu estou? Estou óptima!"

2 comentários:

PL disse...

O que aqui deixamos não é um comentário: é tão só um "grande" OBRIGADO.

Anónimo disse...

Grande texto, Rita, grande testemunho. Escrever é isto :dizer os outros.