quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Péguy

A bomba rebentou. Mudou as formas, a memória, roubou a ignorância e o medo. Em 1912, Péguy roubou a carne, a alma e a esperança e a infãncia e a cruz. " O pórtico do Mistério da Segunda virtude" rebentou tudo por dentro, as mãos e o coração, estilhaços de glória. Ninguém escreve como Péguy. " As crianças quando choram são mais felizes do que nós quando rimos / E quando estão doentes são mais infelizes que tudo neste mundo / E mais comovedoras / porque nós sentimos e eles sentem bem que é já / uma diminuição da sua infãncia. / É o primeiro sinal do seu envelhecimento. / A caminho da morte. / Temporal." Este livro é o princípio, o começo das palavras e dos filhos. " Tudo o que começa tem uma virtude que não mais se encontrará / (...) / Uma nascença que nunca mais se irá encontrar / o primeiro dia é o mais bonito / o primeiro dia é talvez o único dia bonito / e o baptismo é o sacramento do primeiro dia / e o baptismo é tudo o que há de belo e grande". A escola no momento de dizer a verdade tem medo, a escola mente, está a mentir. O nosso tempo, o tempo moderno, do ser que somos hoje, não é a metafísica lodosa da Tabacaria, dos chocolates rimados de melancolia, nem a viagem centrífuga de Bloom na Dublin de Joyce. Isto são migalhas. Rolos de pregas amargas. A modernidade começou antes, "há no que começa uma fonte, uma raça que não volta atrás", os filhos crispados de Zaratustra sabem disso , mas escondem a relíquia amarga. A linguagem eliptíca, repetitiva, as palavras soltas á beira do abismo, a gramática feita esgar, o sangue, a carne e a alma do verbo estão aqui, inteiras, redondas, acabadas. Se a modernidade actualiza o nosso ser, o nosso corpo, se as palavras afirmam a memória, nunca a linguagem se fundiu tanto " que vem a ser ter este corpo; ter esta ligação com o corpo / ter essa ligação com a terra, com esta terra, ser esta terra, o limo e a poeira, a cinza e a lama da terra". Nunca na literatura deste tempo o corpo de Jesus foi tão fundo, foi tanto do ser, uma evidência. Péguy é o escritor que não esquece o lodo da terra, os filhos, o Pai, o naco de pão e a esperança. " O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude" é um dos mais belos livros que habita o coração. A maior descoberta depois da colheita.

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