quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O rio

O rio é feito de crostas, de laços de memória, pedaços de pérolas encalhados nos escolhos. Todos os dias ele está lá. Ninguém o sabe, ninguém o vê. Compram casas por 7oo mil euros para terem um friso, uma fantasia , um cubo de água. Compram restos, esconsos. Quando o vejo, de frente, de Santa Apolónia a Alcântara, roliço, esventrado, na curva do vento, sei que esta é a terra, a cor do sangue. Lisboa não existe, é um caroço, escroque ressequido. Lisboa é o rio, a história e a água. Os barcos de quinhentos e os homens de quinhentos. Que foram em frente, o fim do rio é não terminar. Como há duzentos anos, neste mês, dia vinte e nove, às sete da manhã, quando se foram embora. Dez mil aristocratas, os homens de oitocentos partiram, lambidos pelo vento. Em sete de Março de 1808 o Tejo desaguou no Rio de Janeiro. Como nos anos 60 quando os homens partiam para o Ultramar e as mães enxugavam as lágrimas nos folhos de água parda. O rio é a terra, grandeza e miséria, sebo e cristais de prata. É a pérola que brilha, vaso onde os homens escondem a alma.

2 comentários:

Rita LM disse...

"Lisboa é o rio, a história e a água". Para além da beleza de todo o texto, Gito, aqui está tudo.

E como é possível que, perante verdade tão óbvia, o Porto de Lisboa nos vá roubar o rio, a nós e a Lisboa, levantando um muro de construções de Stª Apolónia a Alcantara???

Desconfio que os envolvidos vão encher os bolsos para depois poderem comprar as raras casas de onde ainda se consegue ver "um friso, uma fantasia, um cubo" do NOSSO RIO...

João Távora disse...

Belo Texto! Abraço