sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Capelanias

António Lobo Antunes deu recentemente duas entrevistas – uma ao Diário de Noticias, publicada na edição de dia 30/9 e outra à revista Visão publicada na edição da semana passada- entrevistas essas que me parecem duas peças que merecem ser lidas com atenção e pensadas enquanto reveladoras da complexidade da alma humana.

Transcrevo alguns excertos da entrevista dada à Visão, que me surgem especialmente significativos:

“(…)
As noites passadas num hospital duram mais?
São infinitas. E é aí que aparece o desamparo. Não estou a falar de mim, estou a falar de uma maneira geral. É óbvio que senti tudo isto. Sofri muito e, ao mesmo tempo, toda esta experiência também me enriqueceu. Sai-se disto com mais amor pela vida e com a sensação de que é uma honra estar-se vivo.

Na guerra, já tinha visto a morte de perto.
Na guerra, era mais fácil porque era uma qualquer coisa de exterior, podia sempre agarrar numa arma. (…) Eu agora tinha a morte dentro de mim. (…) Quando ia às sessões de radioterapia, encontrava pessoas de todas as idades. Lembro-me sobretudo de uma rapariga de 20 anos que usava uma cabeleira postiça. Percebia-se logo que a cabeleira era postiça, mas ela usava-a com tanta dignidade que era como se fosse uma coroa. Uma coroa de rainha. E era, de facto, uma rainha que ali estava.

A doença torna-nos mais doces ou, pelo contrário, mais amargos?
No meu caso, fez com que se acabassem os disfarces, as máscaras, as meias-frases e as meias-tintas. Agora digo o que penso e o que sinto. Estou a falar com as cartas viradas para cima. E é a primeira vez que o faço. Não há nada escondido, não há nada na manga, não há truques nem tentativas de a impressionar e de a comover.

Sente-se mais livre?
Foi muito difícil. Enfim, muito difícil é exagero...

Exagero porquê?
Porque, ao lado, vi pessoas que estavam muito piores que eu. Pessoas sem esperança, à espera da morte. As minhas hipóteses eram grandes e, por isso, às vezes, sinto-me culpado. Mas é verdade que me sinto mais livre, sinto-me muito mais livre. Livre para escrever, livre para viver, livre para amar. No outro dia, com os meus irmãos, disse ao João [o neurocirurgião João Lobo Antunes] que ele tinha escrito um texto muito bonito. E um deles comentou que nós não dizemos essas coisas uns aos outros. Eu agora digo, eu agora digo. E isso foi uma conquista porque, de repente, tornou-se evidente que esta é a única maneira de viver. Claro que tem que haver dignidade, e que não podem existir pieguices, mas acabaram-se as contenções. O meu avô morreu e, ainda hoje, sinto remorsos por não lhe ter dito que gostava muito dele (…)”.

Ao ler esta entrevista vi-me confrontado com muitas ideias, tendo pensado o quanto actual é a chamada à realidade do sofrimento vivido nos hospitais, sofrimento esse com o qual, mais tarde ou mais cedo, todos nos deparamos.
Como se pode pretender, como o faz o projecto de decreto-lei para regulamentar a assistência religiosa nos hospitais, apresentado pelo governo, que a assistência tenha de ser pedida pelos doentes por escrito e assinada?
Haverá alguma ideia, ainda que mínima, do sofrimento que se vive nos hospitais? Da fragilidade que ali se vive e que muitas vezes a única força que encontra é a presença do padre e através dele Daquele Outro que a tudo dá sentido?
Claro que não, mas o que se pretende mesmo é afrontar a Igreja e o seu património desinteressado de séculos no cuidado espiritual dos que sofrem. O que move os capelães portugueses não é a integração nos quadros da função pública, nem o respectivo salário, como afirmou aos órgãos de comunicação social o Padre José Nuno, coordenador das capelanias católicas. Mas desgraçadamente é este o quilate do argumentário dos lacaios que suportam as teses governamentais que, curiosamente, não escondem a sua origem maçónica.
Embora não tenha muitas esperanças, aguardemos que a promessa do primeiro ministro, que já se benze em cerimónias de inauguração de escolas e até agradece aos Bispos Europeus a preocupação com África e com o ecumenismo e lhes reconhece um papel a desempenhar numa agenda mais humanista, promessa essa de que a assistência religiosa nos hospitais terá “solução melhor”, se cumpra.

1 comentário:

Anónimo disse...

Post lúcido e contra corrente. Apoiado!