Os dotôres
Como bons latinos que somos, nós os portugueses adoramos os tratamentos formais e valorizamos incrivelmente um bom “estatuto”, de preferência bem “cristalizado”. Receio que o fenómeno não tenha tanto a ver com vaidades pessoais, mas antes com o anseio secreto de mais uma fórmula de “providência social”, e de amortecedor das agruras da competição profissional. Pouco dados a grandes liberalidades, parece-me que genericamente somos uma gente insegura.
Crescendo no meu mundo bem português, sempre vivi rodeado de doutores e doutoras, a começar com os “Stôres” do ensino preparatório, ao “Doutor” que vinha à nossa casa para receitar um qualquer antibiótico… para mais tarde aprender que também havia “Professores Doutores” (o que não significava que leccionassem obrigatoriamente qualquer cadeira) e depois descobrir que havia um título, “Bacharel”, que não tinha grande sucesso em Portugal.
Assim cresci e assimilei as variadas e distintas formas de tratamento social. Às tantas, tive a sensação que o "dotôr" funcionava como mais um nome próprio, necessário para alguns figurantes da minha vida, quase sempre com um estatuto hierarquicamente superior ao meu.
Agora os tempos mudaram. Desde há alguns anos, com as universidades e escolas superiores a debitarem dezenas de milhares de "dotôres" por ano, e porque não podemos ser todos "dotôres" e assim estragar a panelinha, o título passou a ser atribuído consoante o lugar de cada um na hierarquia. A secretária é licenciada em línguas e literaturas modernas, mas é simplesmente da D. Carolina que se trata. Já o chefe, que frequentou meia dúzia de cadeiras de uma obscura licenciatura, é o "Sôdotôr", literalmente “sem saber ler nem escrever”. Esta foi a lógica que se implantou. O Engenheiro, se é o "manda-chuva", assim é tratado. O outro, o assistente com o mesmo curso da mesma universidade, será, sempre e simplesmente, o Manel. Ai vida dura!
Acontece-me muitas vezes, quando corrijo o meu interlocutor ao telefone informando-o que não sou "dotôr", sentir quão inconveniente eu fui. Apercebo-me nessa altura de um mal-estar do outro lado da linha, como quem me diz que “isso” para o caso não tem importância nenhuma. Que esse tratamento me fora atribuído como mera formalidade reverencial. É então que caio em desgraça e vertiginosamente passo a ser apenas o Xôr. João.
Curiosamente, na indústria hoteleira em que trabalho, um meio extremamente hierarquizado, até há poucos anos pura e simplesmente não havia "dotôres". Talvez por esta carreira nunca ter sido considerada muito prestigiante, antes algo servil.
Mas hoje, ironicamente, integram-se nesta indústria, nas chefias intermédias e cargos técnicos (recepção, comercial etc.), muitos jovens licenciados cujo reconhecimento do título de "dotôr" ainda não tem sentido, nem é valorizado. Têm que ir à luta, conquistar um lugar cimeiro na hierarquia para que o precioso tratamento um dia “conquiste” a luz do dia. E talvez, quem sabe, um lugar no cartão de visita.
Este texto (mais actual que nunca) foi originariamente publicado no Corta-Fitas em Novembro de 2006.
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